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A importância do brincar no desenvolvimento infantil.

  • Foto do escritor: Jovenart Produtora
    Jovenart Produtora
  • 19 de jun. de 2022
  • 15 min de leitura

Prof. Dr. Paulo Sérgio Silva




É muito comum encontrarmos manuais, livros didáticos e outros textos abordando de modo superficial as teorias psicológicas. Esses textos são geralmente construídos registrando apenas fragmentos, muitas vezes mal interpretados da obra dos autores clássicos. Não revelam as essências das teorias e nem tampouco conseguem perceber a contribuição epistemológica das teorias. Como as teorias se relacionam ou se contradizem? Como os autores se posicionam perante os fenômenos e as outras teorias? Quais são suas explicações para os fenômenos? Estas questões ficam desfocadas, mas são de suma importância para uma utilização empírica do lúdico, seja no campo pedagógico ou clínico. O fazer pressupõe o saber. É preciso conhecimento e conhecimento alcançado por pesquisas que garantam o domínio deste fazer e não uma rotina de intervenção sem crítica, conhecimento e reflexão.


1- A mente e o lúdico

São várias as passagens em sua obra em que Freud manifesta a vinculação da Psicanálise à interpretação do comportamento infantil e também como forma de tratamento. Percebemos o quanto as preocupações referentes ao comportamento das crianças desempenharam papel importante na formulação de sua teoria. Passagens como no caso Análise de uma Fobia de um menino de cinco anos ( o pequeno Hans tinha fobia por cavalos, erotismo frente à figura materna e ciúmes pela irmã que havia nascido ); História de uma neurose infantil ( caso clínico de uma fobia combinada com neurose obsessiva de um jovem de dezoito anos ); Uma criança é espancada ( uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais ); Atos sintomáticos e casuais ( relata um caso sintomático de uma criança de treze anos ); Associação de idéias em uma menina de quatro anos ( Freud mostra como podemos utilizar a linguagem infantil para interpretação ); Psicologia do colegial ( Freud observa como um estudante reproduz via transferência, aos professores, suas relações das imagos paternas ); Os sonhos infantis ( Freud não vê diferenças para interpretar os conteúdos latentes e manifestos presentes nos sonhos adultos e nos infantis ). Nestas passagens de sua obra, Freud expõe sua compreensão da mente infantil, o desenvolvimento mental por que passa a criança e os problemas psicopatológicos de sua relação familiar.

É claro que, quando vamos fazer qualquer tipo de trabalho com crianças notamos em seu comportamento expressões de sua dinâmica emocional e os elementos regressivos, ora normais, ora típicos de um distúrbio de desenvolvimento. As propostas e práticas pedagógicas em voga destinam pouca atenção para os fatores subjetivos inerentes na relação pedagógica. Ao propormos qualquer atividade, como o ensino de uma conta de matemática básica, as manifestações na ordem da personalidade irão se apresentar revelando os conflitos emocionais latentes e manifestos.

Alguns educadores acreditam que a educação está distante dos problemas emocionais, e o melhor é fazer uma educação que se preocupe com as questões objetivas, deixando a subjetividade para outra esfera. Ledo engano destes que pensam assim. Essa ilusão é um mecanismo de defesa daqueles que escondem seus próprios medos e repressões. O comportamento humano sempre é subjetivo.

No ato mais objetivo que pareça existem sempre razões subjetivas. Poderíamos ter uma educação mais eficiente à medida que os educadores conhecessem o universo subjetivo do desenvolvimento infantil. A formação dos educadores é muito incipiente quanto ao conhecimento das questões psicoafetivas, principalmente quanto às descobertas da Psicanálise. Os educadores enfatizam em suas práticas a assimilação dos conteúdos e esperam o desenvolvimento cognitivo de seus alunos. O que presenciamos é que o desenvolvimento cognitivo é alcançado muito fora da escola e não por causa das práticas educativas escolares. O conteúdo também deixa de ser bem assimilado, ficando apenas o que se convencionou chamar de crise da educação e fracasso escolar. Já vão mais de cem anos e o preconceito quanto às teorias freudianas ainda é muito presente. Enquanto a Educação padece desta ignorância, os avanços clínicos caminham em passos largos e os seguidores de Freud desenvolvem um vasto conhecimento.

Ao entrarmos em contato com Sigmund Freud, o fundador da Psicanálise, percebemos que ele estava preocupado em descobrir os elementos constituintes da mente humana e seu funcionamento. Na sua teoria, vamos encontrar uma compreensão da mente muito além da visão da Psicologia tradicional, até então concebida no final do século XIX.

Um caso:

O caso se iniciou quando numa manhã de verão surge, na clínica da faculdade em que estudava, uma freira com um menino negro de doze anos aparentando estar assustado e tímido pelo ambiente e a situação. Estava eu no último ano e fazia meus estágios de atendimento. No ano anterior, fiz meus estágios no posto de saúde da cidade, atendendo adultos e adolescentes. Mas no meu último ano, resolvi me dedicar ao difícil atendimento de crianças. A freira chegou até a clínica, indicada pela escola em que o menino estudava. Ele ficara órfão de mãe aos cinco anos e estava, naquele momento, com doze anos, estudando na primeira série do ensino fundamental. A queixa que a freira trouxe era de apatia e dificuldade de aprendizagem na escola. Não sabia ler nem escrever e de todos os casos que atendi naquela ocasião, esse foi o que mais me envolvi. A freira não deu muitas informações, dizendo que o menino havia sido internado no orfanato pelo pai, que o havia levado para lá por não ter condições de mantê-lo. O pai nunca mais voltou para vê-lo e este cresceu sob os cuidados das irmãs deste orfanato, até então. Marquei com ela o contrato de atendimento, que seria uma vez por semana, e todas as informações de praxe, como horários, sessões e tempo de tratamento, que seria muito longo. Levei o menino para a sala de atendimento, que era um modelo de sala de atendimento para crianças, tinha uns seis metros de largura por uns dez de comprimento. Em suas paredes, havia estantes com vários tipos de brinquedos e alguns quadros com temas infantis. Era uma sala aconchegante, com mesas pequenas e cadeiras. Havia também uma pia com água disponível, material de cozinha e uma porta ampla, que dava para um quintal privativo da sala, um quintal ao ar livre com um tanque de areia e vegetação de mais ou menos uns vinte metros quadrados. As crianças que atendia se sentiam muito à vontade e, no início do tratamento, não sabiam o que fazer primeiro, devido às inúmeras opções. Quando o menino entrou na sala disse a ele que podia fazer o que quisesse naquela sala, que ele tinha uma hora disponível para brincar e que eu o ajudaria no que fosse necessário.

Iniciei o atendimento nessa primeira sessão com uma entrevista básica para saber o que ele pensava do tratamento e obter mais informações sobre sua pessoa. Ele estava com doze anos iniciando a puberdade. Seu corpo era grande e o seu desenvolvimento mental era de uma criança bem pequena. Mostrou-se muito inibido e constrangeu-se quando perguntei a respeito de seu pai e de sua mãe. Por ter doze anos era de se esperar que tivesse já uma capacidade de expressão verbal mais desenvolvida; contudo, suas inibições e seu desenvolvimento cognitivo dificultavam a comunicação. Percebendo isso, resolvi iniciar o tratamento com a técnica ludoterápica, disponibilizando os brinquedos. Entre todos os brinquedos que tinha a sua disposição pegou um pianinho e começou a tilintar umas notas musicais. Agachei-me neste momento e procurei observar suas expressões faciais. Ele olhava para baixo e era como se estivesse distante dali. Terminada a sessão, levei-o para a sala de espera e combinei com a freira que iríamos nos ver na semana seguinte. Naquela semana, fiquei pensando no caso e percebi que não tinha muitos dados sobre a vida desse menino. Em minhas reflexões, me questionava em como fazer um diagnóstico sem os dados familiares. Nenhum dado apresentava comprometimento de alguma síndrome genética. Como seria seu relacionamento no orfanato, com seus coleguinhas e funcionários? Como foi seu relacionamento com os pais, e principalmente, com a mãe que perdera aos cinco anos? Como era a educação que recebia na escola? Essas questões ficaram por um bom tempo sem respostas.

Na outra semana, quando a freira trouxe o menino para o atendimento, ele me parecia mais à vontade, havia se arrumado e parecia gostar de frequentar aquele lugar. Levei-o para a sala e resolvi iniciar o atendimento jogando bola com ele para “quebrar o gelo” e ele se sentir bem descontraído. Havia uma bola leve que pulava e o menino se agitava chutando-a em todas as direções. Cansando dessa brincadeira, resolveu buscar outros brinquedos que estavam a sua disposição. Reuniu alguns brinquedos musicais como o tambor, a flauta, o xilofone, o pianinho e a guitarra. Começou a tocá-los um de cada vez num frenético e descompassado “barulho musical”. Pouco interagia comigo e eu me perguntava o que ele queria comunicar com essa atitude. O manuseio com os brinquedos musicais não era de sua intimidade e ele não conseguia desenvolver nenhuma melodia ou ritmos conhecidos. Tentei ensinar-lhe algumas noções de música para criar uma interação, mas percebi sua dificuldade em aprender e eu também não dispunha de conhecimentos apurados de ensino de música. Terminada a sessão, o menino se despediu olhando para meus olhos, o que me chamou atenção, pois ele não era de muitos comportamentos que expressassem interação ou empatia.

Nessa semana, fiquei pensando em como ajudá-lo e resolvi ir até a escola para entrevistar algumas professoras e amiguinhos desse menino, que talvez pudessem eles poderiam oferecer informações sobre sua personalidade ou sobre sua história de vida. Ele havia passado cinco anos nessa escola, que era uma escola pública, sem muitos recursos. Quando conversei com a professora do menino, no intervalo de suas aulas, ela não se mostrou muito envolvida com o caso dizendo que, como ele, havia inúmeros meninos iguais. Destacou que durante as aulas ele era muito apático e ficava por muito tempo perdido e alheio às atividades. Não manifestava agressividade e se isolava quando podia. Resolvi conversar com os amiguinhos do menino que me informaram que, nos intervalos, ele ficava fazendo buracos no chão e as crianças da escola haviam colocado o apelido nele de tatu. Fui embora da escola com a sensação de que pouco podia contar com a Instituição. O problema de meu paciente era mais um caso de reprovação nas estatísticas oficiais, e com os métodos tradicionais de ensino, a escola tinha pouco a lhe oferecer.Andando pelas ruas, pensava no que significava o fato desse menino se isolar e ficar cavando buracos na terra. Qual o simbolismo disto? Será que ele queria se esconder no buraco? O buraco significava algo perdido do passado, como sua mãe ou seu pai? Por que não mostrava interesse pelas atividades escolares? Como as escolas poderiam oferecer alternativas pedagógicas para essas crianças? Como treinar professores para lidar com esses problemas?

Nas próximas sessões, o menino oferecia resistências de comunicação e, por mais que eu tentasse oferecer outros brinquedos, o menino insistia em brincar com os instrumentos musicais. Achei que ele não havia gostado da minha ida na escola e que deveria criar uma alternativa para sua vida. Levantei a hipótese que se ele pudesse aprender música, por sua vinculação motivacional com os brinquedos musicais, poderia melhorar sua auto-estima e se desenvolver na escola. Pensei, “um músico sempre é valorizado na sociedade e ele poderia desenvolver algum talento”. Procurei um amigo meu que era professor de música em um centro cultural, patrocinado pela prefeitura. Pedi para ele que desse aulas de música para meu paciente e que tivesse muita paciência, devido ao seu quadro clínico. Nessa semana, quando a freira trouxe meu paciente para tratamento, comuniquei-lhe que o tratamento estaria passando por uma nova fase e que era necessário, devido à gravidade do caso, um número maior de sessões por semana e que ela deveria matriculá-lo nas aulas de música do centro cultural, pois já havia mantido contato com o professor.

Meu paciente iniciou as aulas de música e passou a vir duas sessões por semana. Eu estava mais animado nessa época e queria criar o maior número de alternativas de tratamento. Passei a estudar casos de depressão em crianças e não encontrei muita literatura disponível sobre o tratamento de órfãos que vivem em instituições. Comecei a pensar sobre o orfanato e como era esse espaço na vida de meu paciente. Resolvi ir até o orfanato, conversei com alguns meninos e soube que eles ficavam nesse prédio até o final dos doze anos e que depois desta idade iam para um orfanato de maiores até dezoito anos. Fiquei preocupado, pois meu paciente tinha comportamento de uma criança de seis anos mais ou menos, apesar do tamanho e da idade. Soube, por essas crianças, que havia algumas normas rígidas de disciplina e que as crianças sofriam repressões pela conduta. No contato com uma freira perguntei se poderia ver a ficha com os dados pessoais de meu paciente. Ela me disse que sim e entregou a ficha. Depois de lê-la atentamente descobri um dado de extrema significância para o caso. A mãe de meu paciente havia morrido num acidente provocado por um temporal. A família morava numa encosta de um morro e, num dia de grande chuva, a casa foi soterrada por uma avalanche, na qual a mãe do meu paciente faleceu. Ficou claro neste instante o significado de muitos de seus comportamentos. O fato de cavar buracos no chão revelava sua busca pela mãe que havia sido soterrada. No período do acidente, meu paciente ficou tão traumatizado que bloqueou seu desenvolvimento. Não queria crescer, permanecendo na idade mental de cinco anos. Foram duas perdas extremamente cruéis para ele. Primeiro a perda da mãe e depois o abandono do pai. Aos cinco anos de idade, o menino passou por essas perdas que provocaram uma depressão que permaneceu como característica de sua personalidade. Seu isolamento e dificuldade de comunicação eram sinais do sentimento de abandono. No quadro depressivo, o sentimento de tristeza profunda geralmente ocasiona conseqüências típicas na dinâmica da mente. O depressivo não consegue superar a perda e se sente desmotivado para reverter o quadro. Sente inicialmente o choque da perda e vincula-se a dois sentimentos destrutivos: a raiva e a culpa. A raiva procura diversas direções para escapar e associa-se à culpa. A raiva, no fim, volta-se para o indivíduo, que resolve punir-se. Sua punição é o sofrimento que tem de experimentar com manifestações psicossomáticas ou de ordem neurótica, com comportamentos de anulação, chegando muitas vezes ao suicídio. Meu paciente desenvolveu um comportamento ritualístico de cavar buracos, como um autista, expressando ainda uma energia de querer a vida. Era como se estivesse querendo ressuscitar a mãe sendo seu salvador, mas ao mesmo tempo buscava uma saída para um mundo de abandonos que havia vivido. Sua depressão era manifestação da culpa que havia sentido pela perda e seu crescimento psicológico não poderia ocorrer enquanto não se desligasse das forças mentais autodestrutivas. A raiva era direcionada para si e o mundo social que viveu não permitiu uma vinculação mais subjetiva e de inter-relação mais intensa com outros personagens que pudessem substituir a figura materna ou paterna.

Saí do orfanato com algumas dúvidas ainda na cabeça. O significado de cavar os buracos havia sido solucionado, mas o que representaria sua obsessão pelos brinquedos musicais? O que significava a música? Passados dois meses de aulas de música, meu paciente não tivera grandes progressos. Telefonei para meu amigo professor de música e este me informou que o menino tinha muitas dificuldades de aprendizagens e de relacionamento interpessoal. Pedi mais paciência, pois aquela criança solicitava cuidados especiais. Direcionei meu foco de atenção, nas sessões, para a dinâmica familiar, mesmo que neste momento meu paciente não tivesse uma família nuclear. Na clínica, havia uns bonecos representando a família e comecei a brincar com meu paciente com esses bonecos. Houve alguns progressos em seu comportamento. Ele começou a esboçar um maior sentimento de tranqüilidade e confiança. Depois resolvi brincar de bonecos de fantoches para que meu paciente, sendo protagonista de estórias criadas por ele mesmo, numa concepção psicodramatista, pudesse promover algumas catarses e se livrar da sua angústia. Ele começou a representar histórias de crianças que brincavam e se divertiam num grande pátio. Percebi que se tratava do orfanato. Nesse pátio, havia uma figura feminina que cantava e dançava com as crianças. Comecei a me perguntar quem seria essa figura feminina. Talvez fosse uma recreacionista, uma freira, ou uma funcionária.

Resolvi então buscar mais informações, voltando ao orfanato. Quando ia ao orfanato ficava observando a sua rotina. O número de crianças chegava a uns cem. Havia um playground, um gramado, um pátio e espaço para as crianças brincarem à vontade. Conversava com os funcionários e buscava sempre o maior número de informações possível. O caso de meu paciente requeria que eu buscasse informações além daquelas obtidas pelo espaço terapêutico. Não havia contato com um progenitor que pudesse falar da criança desde a tenra idade. As freiras se mostravam solícitas, mas não iam além das rotinas eclesiais e do sustento material que ofereciam. Conversando com um jardineiro do local, perguntei-lhe como era o comportamento de meu paciente e se ele sabia de alguma coisa que pudesse me ajudar. Disse que o menino estava há muito tempo no orfanato, que pela sua idade e comportamento ( isolamento ) era muito difícil a adoção. Perguntei se em algum momento o comportamento dele havia lhe chamado a atenção. Disse que o que mais chamava a atenção era que ele gostava de passar horas brincando com terra e mudou esse comportamento recentemente, quando apareceu naquele orfanato uma freira jovem que permaneceu alguns meses por ali e fora transferida para outra entidade da igreja. Perguntei como era a relação do menino com essa freira. Ele me respondeu que ela mantinha não só com este menino, mas com todos, uma relação de muito carinho e diversão. Disse que ela mantinha atividades recreativas com as crianças e que gostava de fazer uma roda, na qual tocava violão e cantava para as crianças. Ficou claro que a figura feminina que ele representava na ludoterapia era essa freira, à qual ele havia se vinculado e, o fato de brincar com os instrumento musicais, representava sua vinculação afetiva com esta freira e não uma vocação para a música, como eu havia pensado inicialmente. Talvez ele pudesse vir a aprender música ou a ler e escrever e se desenvolver na escola, mas enquanto não resolvesse os conflitos mentais oriundos das perdas, manteria esse bloqueio no desenvolvimento.

Fui embora pensando sobre o que havia escutado do funcionário do orfanato. O menino tinha passado por mais uma perda profunda. Quando essa freira foi embora seu comportamento piorou, e por isso, ele fora indicado para tratamento na clínica. Sua regressão era um mecanismo de defesa, que utilizava, e um sintoma de sua depressão. O teste da realidade provocava frustrações que seu ego imaturo não conseguia superar. Transferira para a freira a imago materna e superava suas angústias e comportamentos regressivos nas atividades lúdicas e musicais que ela proporcionava. Deixou de cavar buracos quando a freira brincava e, provavelmente, dedicava muita atenção para com ele. Deixou recentemente de cavar buracos quando veio para clínica e podia ter atenção de um personagem masculino como eu, representando seu pai distante. Depois de conseguir desvencilhar o diagnóstico, o que demorou uns seis meses, agora eu tinha uma missão mais desafiadora, que era encaminhar um tratamento específico para o caso de depressão e de bloqueio de desenvolvimento. Percebi o quanto eu tinha investido neste caso e punha a me perguntar por que tinha feito tudo isso. Tinha outros casos na clínica, de crianças fóbicas, depressivas e histéricas. Conversando com a supervisora da clínica, ela disse que eu tinha tido uma contratransferência positiva para com o caso. Pensei no que havia nessa contratransferência positiva que me intrigava. O óbvio havia sido reprimido da minha consciência por todos esses meses. Eu também havia perdido minha mãe com cinco anos de idade, num acidente de automóvel. Inconscientemente me identifiquei com meu paciente e este caso não me deixava dormir à noite.

Agora sabia que teria uma missão difícil, pois estava terminando o curso e meu paciente teria outra perda substancial, seu terapeuta iria se formar e teria de abandonar o caso. Como encaminhar a terapia para esta outra separação, que o menino teria de provar? Percebi que estava com medo e este medo prejudicaria a terapia. Conversando com a supervisora da clínica resolvemos encaminhar o caso da seguinte maneira: nos últimos dois meses de tratamento, o menino teria dois terapeutas. Enquanto um iria trabalhando a separação, outro iria começando uma nova relação e o paciente não sentiria tanto a perda. Indiquei uma estudante amiga minha, do quarto ano, que ainda teria mais um ano de formação para tratá-lo. A figura feminina foi escolhida para que o menino pudesse fazer sua transferência da imago materna, conseguir recuperar sua auto-estima e prosseguir no desenvolvimento de uma personalidade mais autônoma. Foi difícil dizer a ele que eu iria me formar e teria de deixá-lo. O menino chegou a chorar, neste dia, dentro da sessão. Eu lhe disse que ele precisaria muito de uma pessoa, que era muito importante para ele. Era ele mesmo. Disse que ele faria treze anos e que iria para um grupo de adolescentes em outro orfanato, para meninos maiores, e que teria de se mostrar forte e responsável para consigo mesmo. Falei da outra profissional que iria atendê-lo, que tinha muita admiração por ela e que ele iria gostar dela também. Fazíamos quatro sessões por semana com ele. No começo eu fazia duas sessões e ela duas também. No final, eu fazia uma sessão e ela começou a fazer três. O ano terminou e eu me formei. Deixei o caso e acredito que ele teve um bom acompanhamento no ano seguinte. Conversei algumas vezes com minha amiga sobre o caso e ela disse que estava indo bem. Seus sintomas depressivos e obsessivos haviam melhorado.

Este caso representa como os aspectos emocionais interferem no desenvolvimento infantil e como o contexto social interfere na dinâmica de aprendizagem. Esse menino teve contato com três instituições importantes. O orfanato de cunho religioso, a escola e a clínica de Psicologia da universidade. No orfanato, ele era mais um. Sua individualidade era enfraquecida pelas políticas de tratamento coletivo. Somente quando apareceu uma freira que trouxe uma prática de relacionamento com as crianças, proporcionada pelas atividades lúdicas que desenvolvia no pátio, é que ele pôde se motivar e criar mais vínculos com as outras pessoas, modificando seu comportamento e humor. As canções que cantava com as crianças traziam alegria e um sentimento de irmandade entre elas. A figura dessa freira simbolizava a mãe protetora e provedora de amor e carinho que o menino precisava. Na instituição escolar era também tratado de maneira coletiva, perdido na multidão. As práticas pedagógicas estavam muito distantes de suas necessidades psicológicas. Sua auto-estima não era trabalhada e o universo lúdico só ocorria no intervalo, quando as crianças passavam a maior parte do tempo brincando. Na clínica, ele recebia tratamento individualizado e seu espaço para o universo lúdico era garantido pela ludoterapia. Podemos perceber como o brincar representa um instrumento maravilhoso para o tratamento das crianças. Percebemos também como, nesse caso, a freira desempenhou um papel importante trazendo o lúdico para a rotina do orfanato. Sua concepção de infância enfocava a necessidade da brincadeira como condição essencial do universo infantil. A música também pertence ao universo lúdico e possibilita uma expressão fantástica de prazer e ajuda em muito na melhora da auto-estima das pessoas. É velho o jargão de que quem canta seus males espanta. O caso ilustrado do menino que tinha mania de cavar buracos e poderia se perder num tratamento medicamentoso e tradicional das entidades psiquiátricas foi tratado sem nenhum teste de QI ou de personalidade. O enfoque foi dado na relação terapêutica, na investigação da dinâmica da mente humana e na essência da própria infância com suas perdas e ganhos e da superação das perdas pelo fortalecimento do ego. O jogo, a dramatização, enfim, o lúdico como técnica de diagnóstico e de tratamento das representações simbólicas e dos conflitos infantis não pode ser desprezado. Quando bem conduzida, a ludoterapia leva à compreensão de muitos entraves do desenvolvimento infantil e possibilita a melhora do quadro clínico do paciente.

 
 
 

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